Asperger
A síndrome de asperger, faz parte do espectro autista, mas é um grau tão sutil, que pode passar despercebido até a idade adulta. O Aspie passa a vida inteira se treinando para melhorar em suas dificuldades de interação social, tentando se encaixar num mundo que parece muito hostil e enfrentando crises existenciais, desgastes de energia e muitas limitações, ao passo que usa as suas poucas habilidades para continuar sendo, num mundo que enxerga completamente barulhento, fútil e raso.
Eu não tive um desenvolvimento normal, mas por causa das intercorrências que tive na infância, meus atrasos passaram despercebidos. Minha mãe contava, que fui um bebê de carrinho. Ela não me colocava no chão e eu não cheguei a engatinhar. Disse que um dia alguém chegou e me viu sentada no carrinho, me tirou e colocou no chão onde já segurei nos móveis e andei surpreendendo a todos.
Não tenho muitos detalhes do meu desenvolvimento, mas pelo que sei, quando tinha um ano e meio adoeci gravemente e parei de andar. O conjunto de doenças que me acometeram por pouco não me ceifaram a vida, como sarei já quase com 3 anos, tenho alguns flashs de lembranças, tipo cheiro de remédios, injeções e uma diarreia que demorou muito a desaparecer. Me lembro que comemorei a primeira vez que fiz um cocô normal. Então, toda a minha personalidade difícil foi atribuída ao período que estive doente e depois ao aprendizado tardio. Ninguém percebeu que aquele choro incessante por qualquer motivo, o fato de só aceitar minha mãe e o pavor de me alimentar, era algo além do que uma criança reaprendendo a viver. Era a síndrome camuflada, ainda tenho algumas lembranças do quanto era horrível tudo ao redor.
O fato é que cresci uma menina muito estranha. Chorava demais, por tudo e qualquer motivo. Tinha uma tristeza constante me corroendo, só ia no colo da minha mãe e gritava se outra pessoa cuidava de mim. Me recusava a comer, era um grande sacrifício me alimentar e sair da rotina era muito desgastante pra mim.
Minha irmã mais velha, sempre muito extrovertida, brincava com as crianças da vizinhança, mas eu não conseguia. Mesmo que ficasse ao lado assistindo as crianças brincarem, chegava um momento que eu entrava para casa e deitava na passadeira que tinha na porta, exausta e deprimida. Hoje sei que apenas o barulho era suficiente para me desgastar e também a frustração por não saber brincar e conversar com as outras crianças.
Minha vida escolar era um verdadeiro tormento porque nunca consegui interagir com as outras crianças e era um desconforto muito grande quando as professoras falavam comigo. Me lembro o quanto me sentia mal enquanto faziam a chamada e eu sabia que teria que responder "presente". Muitas vezes a aula não prendia minha atenção e eu recortava papel e fazia bonequinhos enquanto os coleguinhas faziam exercícios.
Em casa eu me sentia um pouco mais à vontade, desde que não chegasse ninguém de fora, então eu ficava pelo quarto no andar de cima, ou dentro do guarda-roupas, ou embaixo da cama. Não queria ser achada, era muito desgastante interagir.
Cresci ouvindo de meus pais que eu era uma menina preguiçosa, pirracenta e teimosa demais. Com meus irmãos também era agressiva em alguns momentos e implicante em outros. Vez ou outra conseguíamos brincar, mas na maioria das vezes eu era apenas expectadora das brincadeiras. Cresci com estigmas de pior filha, de criança e adolescente difícil, fui a que mais apanhei em casa.
Urinava na cama até bem crescida, tinha mania de mexer no lixo das pessoas procurando coisas pra brincar, constantemente ficava depressiva e sempre me isolava. Às vezes até desejava brincar com as outras crianças, mas não sabia como. Em vários momentos da vida desejei estar morta.
Na escola nunca participava de nada, não aprendi a jogar, nunca entendi regra nenhuma, sempre fiquei pelos cantos. No início eu ficava só com a professora, depois, aos poucos elegia algum coleguinha excluído para trocar umas palavrinhas mas não me aprofundava nas amizades. A lembrança mais viva que tenho dos meus primeiros momentos na escola, foi um constrangimento que sofri por molhar a roupa. A bermudinha era apertada demais e eu não conseguia tirar antes do xixi começar a sair. Chorei e gritei muito porque me expuseram na classe.
Era a mais apagada da escola. Quando estava com 9 anos, cheguei a fraturar o braço no recreio e nem chorei pra não chamar atenção. Fiquei sofrendo em silêncio e só contei o que aconteceu na saída quando minha mãe foi me buscar.
Sempre tive uma amiguinha de cada vez, mas mesmo com elas, nunca fui inteira. Aos 13 anos ainda brincava de boneca no chão, com crianças de 6 anos. Não conseguia interagir muito com crianças da minha idade. Morava num condomínio onde os adolescentes da minha idade brincavam de sinuca, vôlei e namoravam. E eu brincando com as criancinhas.
Na adolescência era aparentemente a tímida, só conseguia me relacionar com outros jovens, quando usava minha irmã e vizinha como suportes nos diálogos. Longe delas eu não conseguia sustentar um diálogo. Então entrei na fase de me apaixonar e até nisso meu comportamento era muito estranho pois simplesmente ficava fissurada, obcecada e perseguia os meninos com o olhar até incomodá-los e causar medo. Nunca fui bem sucedida nessa área, só sabia olhar mesmo.
Tive pouquíssimos namorados durante a vida. Tinha vontade de me relacionar, mas não sabia muito bem com agir e acabava sendo abandonada. Apesar de ter me tornado mãe, nunca dei conta de ser quem ele precisava que eu fosse. Sempre dependi das pessoas, sempre permiti que decidissem por mim. Coincidiu com a fase que precisei mudar de Estado e as mudanças sempre me desgastaram muito. Tive muita depressão nessa época, ansiedade, fiquei agressiva e muito infeliz. Não tinha a compreensão da família e demorei muito pra me adaptar à nova realidade.
Na vida adulta, apesar da dificuldade de interação social, fiz algumas amizades que consigo manter. Minha dificuldade maior é não conseguir me expressar falando, da mesma forma que me expresso escrevendo. Num texto, consigo exprimir toda a minha ideia, mas falando, não consigo manter um diálogo linear, com princípio, meio e fim. É como se eu quisesse por logo um final na conversa e voltar pro meu silêncio. Se precisar falar em público, a ansiedade me consome, o coração dispara, a boca seca, a voz treme e embarga, não consigo encarar os ouvintes, realmente tenho pânico de perceber que muitas pessoas estão me olhando e me ouvindo.
Por falar em rostos, um fato acontece comigo: moro na mesma rua há quase vinte anos e não conheço o rosto dos meus vizinhos, simplesmente porque ando olhando para o chão. Não consigo encarar as pessoas, a menos que sejam próximas. Sou vista como uma pessoa sistemática e não dou espaço pra ninguém se aproximar.
Entre a família, apesar de ficar a maioria do tempo sozinha na minha casa, consigo conversar, rir, brincar, e ser um pouco mais "normal". Mas entre os estranhos, andei me decepcionando muito porque acredito demais nas pessoas, chego a ser até ingênua e quase sempre me deparo com traições, falsidades e explorações que só me dou conta depois que acontecem, porque acredito em tudo que me falam.
Eu acabo percebendo os abusos, as trairagens, as falsidades, mas demoro muito tempo para desassociar o que falam de si e o que realmente são. Depois que percebo que me enganaram de novo, me isolo por mais um longo período, até ser iludida novamente por outra pessoa.
Nunca consegui ter uma carreira e os empregos que tive arranjaram pra mim. Sempre trabalhei e muito, mas nos últimos anos escolhi ser diarista, pra poder fazer as coisas no meu tempo, caladinha e nos dias que escolho trabalhar. Interajo com as pessoas pra quem trabalho, mas consigo administrar isso melhor porque na maioria do tempo estou ocupada. De certa forma foi uma boa saída, pois consegui me manter sem me desgastar tanto mentalmente, apesar de danos físicos que acabei provocando com tantos esforços. Apesar de saber que tenho potencial pra realizar coisas maiores, me acomodei com o que facilita minha vida no sentido de não ter que interagir.
Atualmente não estou trabalhando e nem frequentando grupo nenhum onde eu tenha que me forçar a interagir. Apesar de ser mais fácil na vida adulta, pois consigo conversar, ainda sou tímida e ansiosa com pessoas estranhas. Fico dias sem sair de casa e evito todos os tipos de saída onde sei que vou encontrar muita gente.
Tenho duas ou três amigas que encontro periodicamente e se tenho que sair para encontrar mais pessoas, vou mentalizando isso para me preparar e acostumar com a ideia. Acho que tudo na minha vida foi na base do treinamento, já que não sou espontânea nas minhas relações. Das pessoas que convivi, poucas conseguirão me descrever, sou um tanto misteriosa até pra quem caminhou muitos anos comigo.
A sensação que tenho é que não sou como as outras pessoas e não pertenço à este mundo. É uma luta diária pra me manter focada no que preciso fazer, quase sempre estou procrastinando porque simplesmente quero permanecer na minha bolha. Sei que tenho que produzir, manter as coisas em ordem, mas cada dia que passa me desligo mais do que acontece ao redor. Não vejo muito sentido nas coisas, não domino assunto nenhum. Só me interesso pelo Evangelho, mais nada.
Os neurotípicos sabem conversar sobre os esportes, a política, músicas, artistas, atualidades, vídeo games, novelas, brincadeiras em geral, times, mímicas, filmes, artistas que atuaram neste ou naquele filme... uma infinidades de assuntos. Em mim só cabe o Evangelho. É a única coisa que domino e sou coerente. Não tenho muita expressão corporal, caminho com uma marcha estranha, não tenho coordenação motora fina, minha letra sempre foi um garrancho, não sou muito detalhista e só realizo o que faz sentido pra mim. Gosto de cozinhar, acho que nisso sou boa, mas nada sofisticado.
Me vejo como uma pessoa intensa e muito sentimental. Sou capaz de chorar de novo, com fatos que aconteceram na minha infância e sou extremamente empática. Chego ao ponto de me prejudicar para priorizar o outro e não posso ver ninguém chorar que também me emociono. Dizem que alguns autistas não sentem empatia, mas eu ao contrário, sou hiper empática. Todas as dores da minha vida parecem compactadas aqui dentro de mim e volta e meia uma delas sobressaem.
Eu sei que o autismo é um conjunto de fatores e eu tenho certeza que sou asperger. Não há um exame que diga se sou ou não, apenas tenho todos os traços e sei que sou. Um profissional investigaria com base num questionário e diria o que já sei, por isso nem quero diagnóstico. Já não faz diferença, já cheguei até aqui e fui me adaptando. Aliás, já participei de pesquisas e o resultado é 146 em 200 e a observação é que sou muito provavelmente asperger. Não tenho condições de pagar profissionais para me acompanhar.
Aprendi a lidar com minhas diferenças e me aceitei assim. Tenho um jeito todo meu de viver e agir, mas me adaptei bem. Tenho poucas amizades que considero suficientes porque consigo me programar para mantê-las. Cumpro minhas obrigações e deveres, mas não me cobro além do que é confortável pra mim. De certa forma aprendi a ser feliz sendo quem sou. Tenho arestas e brechas como todo mundo que está aqui para ser aperfeiçoado, mas considero que estou indo bem.
Mesmo sendo num grau muito leve e não tendo prejuízos cognitivos, conviver com o autismo é um desafio diário, que até aqui, venci.
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