Abusos e agressividades

Quando eu era criança, enquanto me recuperava das doenças, só aceitava minha mãe como cuidadora. Ninguém mais servia, nem meu pai. Ele tinha um pouco de nojo de mim, porque as feridas fediam e não construiu uma relação de proximidade comigo. Minha mãe, pelo que me lembro, tinha muito jeito para me convencer a comer, estava sempre junto nas minhas internações e apesar da pouca idade e de ter outros filhos, sempre estava ao meu lado se dedicando.

Mas conforme fui crescendo e tomando consciência da minha dificuldade de interação, além das crises dos meus pais onde discutiam e se agrediam com palavras por causa dos adultérios do meu pai, isso parecia me afetar mais do que aos meus irmãos. Não entendia bem porquê, mas eu respondia a todos esses sentimentos com muitas agressividades. Ao mesmo tempo que era uma criança muito ingênua e fácil de manipular, eu era também um fio desencapado quando me sentia invadida no meu mundinho e arranhava, mordia e chutava meus irmãos. Consequentemente, depois apanhava dos meus pais e ficava de castigo, o que frutificava como sentimento de abandono e incompreensão.

Carreguei durante a infância e adolescência o estigma de pior filha, a mais levada, a mais irreverente, a mais teimosa, agressiva, a mais chorona... mas ninguém nunca me enxergou de fato, nunca fui ajudada nas minhas dificuldades de me encontrar e saber dos meus limites. A resposta agressiva tinha uma causa que ninguém percebeu. Meus irmãos aprenderam o caminho, todos tinham seus momentos de travessuras, mas quando "o bicho pegava", a culpa era da Janete. Durante a adolescência enfrentava inclusive meu pai, que muitas vezes perdeu a paciência com razão.

Tinha outras falhas que mereciam atenção e acompanhamento, mas eram tratados como parte de mim, tipo: urinar na cama até o início da adolescência, vício de mexer no lixo pra catar coisas que os outros desprezavam, pequenos furtos do que estava ao alcance, o engraçado é que eu sempre fui incapaz de mentir, se perguntasse eu confessava na hora. Essa ingenuidade também me rendeu um abuso sexual aos 7 anos, mas por sorte minha foi apenas algo superficial que não me traumatizou.

Minha ingenuidade perdurou... no meu primeiro namoro, estava descobrindo minha sexualidade e permitia os avanços do meu namorado, apesar de ser virgem. Era muito infantil apesar dos meus 16 anos e não consegui amadurecer o relacionamento que durou menos de dois meses. Ele me deixou por outra moça que já namorava antes de mim. Eu nem percebi que estava sendo usada e só descobri isso quando ele terminou e disse que ficaria noivo dela, porque tinha sido transferido para outro Estado e quando fosse, casaria para levá-la. Muitos baques de uma vez só e eu quase morri de tristeza. Não bastasse a traição, o desrespeito, a auto estima lá no chão, minha mãe se afeiçoou ao rapaz e muitas vezes o recebia em casa, passando por cima até dos meus sentimentos. Eu sentia como se ela estivesse unida a ele com intuito de acabar com o que restou dos meus brios e amor próprio. Me enfurnava no quarto e chorava muito, mas como estava apaixonada, nem eu tinha forças pra pedí-lo pra não vir. O ex tinha livre acesso à minha casa, mas pra conversar com minha mãe e não comigo. Chegou a levar duas moças (a noiva e outra amante) pra apresentar pra minha mãe e ninguém levou em conta minha dor.

Fiquei algum tempo sozinha, enquanto o rapaz foi viver a vida dele. Tive alguns namoricos inconsequentes e depois de 2 anos conheci o pai do meu filho, que já veio cheio de traumas e eu o acolhi. Apesar de nunca ter sito muito apaixonada por ele, nos relacionamos por mais tempo e eu engravidei logo. Sem estrutura emocional e financeira, o relacionamento foi desandando e por ter um filho, tudo era mais grave. Eu trabalhava e me virava como podia. Saí da escola porque não conseguia pagar a mensalidade, fazer enxoval de criança e de casa. Os projetos do casamento acabaram sendo frustrados e eu fiquei só, com filho, desempregada e doente.

Sabe-se lá por que, minha cesariana não cicatrizou perfeitamente e 10 meses depois do parto, eu ainda estava com uma infecção na cicatriz. Desempregada, doente, sozinha e com um filho pra criar, só sabia sofrer e não tinha esperança nenhuma de me reerguer. Minha mãe que nessa época já era viúva, me acusava e tratava com arranco. Fez certa pressão pra eu me livrar do pai do meu filho e agilizou nossa mudança para Belo Horizonte. Supostamente eu teria a opção de não ir, mas desempregada e com filho, eu não tive escolha.

Foi a pior crise depressiva da minha vida. Eu mal conseguia sair dos cantos. Comia compulsivamente e engordei mais de 20 kilos em um ano. Era uma dor que me impedia de viver, sonhar, desejar, ser... eu só sabia sentir uma dor de morte e chorar. Meu pequeno nessa época sofreu as consequências, porque eu não tinha estrutura pra ser mãe. Nessa época minha mãe parecia me suportar por causa dele apenas, não perdia a oportunidade de me humilhar e acusar.

Até que comecei a trabalhar, me reerguer, fazer curso, conhecer pessoas e as coisas foram melhorando. Tive relacionamentos superficiais, mas que já melhoraram minha autoestima e eu tinha uma vida mais próxima do normal. Não gostava de ir pra casa, mas era o que havia. Enquanto morei com minha mãe, tinha os rótulos pra carregar, estigmas de uma vida inteira de guerra contra minha condição. Eu nunca entendi meu lugar no mundo e muito menos minha mãe entendeu. Quando escolhi minha religião me atacaram bastante, mas acabaram vendo em mim mudanças positivas e acabaram aceitando minha escolha.

Quando resolvi construir minha casa, não tive muito apoio, mas fui perseverante e consegui. Fiquei bastante endividada e demorei muitos anos para me equilibrar, mas consegui. Aos 8 anos finalmente meu filho era meu e fomos felizes tendo nosso cantinho e coisinhas. Foi minha principal conquista e assim fui ganhando o respeito da minha família. Houveram sim muitas interferências na criação do meu filho, afinal eu morava ao lado da minha mãe, mas no geral era boa a convivência e foi assim até ela falecer.

Hoje meu filho já não mora comigo e nosso relacionamento é um tanto distante. Mas as coisas vão se desvendando diante do meu entendimento e eu consigo olhar minha história com compaixão. Que criatura oprimida não reage com agressividade? Que pessoa encurralada pelos conceitos, cobranças e hostilidade não surta de vez em quando? Imagina um autista com toda a dificuldade de se entender e entender o mundo... mas enfim, sobrevivi tempo suficiente pra me dizer "te perdoo, te amo e te trato bem". Hoje já estou blindada contra os abusos e já nem sou agressiva, porque no menor cenário de desrespeito, me retiro e vou viver minhas coisas longe dalí. Estou onde me sinto amada, correspondo a atenção de quem me procura, mas já não dependo de aprovação e nem do reconhecimento das pessoas pra saber do  meu valor.

Minha fé teve um papel primordial na minha vida, fez ajustes na minha alma e me deu crescimento. Hoje me enxergo como sou, cheia de defeitos, mas sempre em processo de aperfeiçoamento no amor. A vida me brindou com um neto lindo que é o amor da minha vida. Nele tenho encontrado reciprocidade e esperança de dias mais felizes. Estou na meia idade e a memória parece um filme onde me analiso e entendo. Daqui pra frente, menos cobranças e mais leveza. Eu mereço.

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